De ontem e de hoje – Mister Browne
por Licínia Quitério
Por razões profissionais, conheci em tempos um americano típico, Mister Browne, húngaro de nascimento, a viver em Los Angeles, um homenzarrão dos seus sessenta anos, de grandes bigodes grisalhos, que me aparecia de lencinho colorido ao pescoço e não raro com um chapelão de cow-boy. Tratava-me por Maria, eu sempre lhe dizia que não era Maria e ele, imperturbável, continuava, Yes, Maria, tal como tratava todas as jovens portuguesas que, como eu, eram empregadas e tinham patrão. Visitava a empresa duas vezes por ano, para inspeccionar o fabrico das cadeiras que ali se fabricavam, em exclusividade para ele, segundo os seus próprios desenhos e exigências. Ao longo dos anos, fui-me habituando às visitas de trabalho de Mister Browne, que, nos intervalos das infindáveis reuniões, ficava a conversar comigo da sua vida familiar, nomeadamente de um dos filhos que andava quase sempre bêbado e que de trabalhar não gostava, o que trazia Mister Browne apreensivo com o fígado e o futuro do descendente. Invariavelmente abria a carteira e mostrava-me as fotos mais recentes da família, da casa, e ultimamente da piscina que dava um trabalhão a manter limpa, segundo métodos que me explicava.
Numa dessas conversatas, preparei atalhos para lhe perguntar o que pensava de Hiroshima. Mister Browne retorceu as pontas do bigode, disse ham, ham, como dizem sempre os americanos a iniciar as frases, e, perante o meu olhar a filar a resposta, pausadamente, muito pausadamente, ham, ham, Maria, Truman fez o que tinha de ser feito, para evitar muito mais mortes. Assim, sem um lamento. Percebeu que eu não estava confortável. Disse, yes Maria, awful, sure Maria, war is awful.
Passaram décadas sobre um dos maiores crimes da humanidade e todos os anos em Agosto recordo Mister Browne, a água límpida da sua piscina, o seu pragmatismo a falar de Hiroshima.
Quando chegou à reforma decidiu publicar o que escreve.
Tem neste momento publicados seis livros de poesia e três de prosa (contos e romance).
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